16.4.06

Agradeça ao salvador

Aproveitando a data de hoje, em que milhões lembram de alguém que teria salvado os homens (segundo registros tão milenares quanto duvidosos), por que não lembrar de alguém que realmente salvou o mundo?

Onde você estava no dia 26 de setembro de 1983? Não se lembra? Nem eu. Mas o coronel Stanislav Petrov, do então exército soviético, estava em seu posto em um bunker perto de Moscou. Seu trabalho era tomar conta do sistema de satélites que avisariam de um ataque nuclear americano. Logo depois da meia-noite, os computadores indicaram o lançamento de um míssil americano. Petrov deduziu que era um erro do sistema, porque um ataque real não seria feito com apenas um míssil. Logo depois, quatro outros mísseis apareceram no sistema. Ainda assim, Petrov tinha dúvidas e tomou a decisão de não informar ao escalão superior.

Resumindo a história, Petrov estava certo. Era um alarme falso. Ao não transmitir o alarme, Petrov evitou uma resposta soviética, em um momento de grande tensão entre as duas superpotências da época. Apenas três semanas antes, os soviéticos tinham abatido um jato comercial da Korean Airlines por engano...

Mas ainda que estivesse certo, Petrov estava errado... para a burocracia militar. Sua função era transmitir o alerta para o escalão superior, coisa que não fez. Petrov não chegou a ser mandado para um campo de concentração, mas foi considerado um oficial não confiável, repreendido por supostos erros burocráticos e encostado em uma função sem destaque até se aposentar. Até hoje vive humildemente em uma pequena cidade russa, praticamente esquecido.

Só agora Petrov está sendo reconhecido... nos EUA. Está previsto para o final desse ano o lançamento de um documentário sobre sua história, chamado The Man Who Saved the World. Promete ser bem mais interessante que a programação habitual da TV dos domingos de páscoa.

Mais detalhes na Wikipedia

15.4.06

Nem só Cristo tinha poder

Ele nasceu do útero de uma virgem e seu nascimento foi anunciado por um anjo. Reuniu ao seu redor um grupo de leais seguidores a quem transmitiu uma avançada mensagem de igualdade e fraternidade. Foi um agitador das massas e suas palavras tanto desagradaram aos romanos que acabaram por matá-lo. Em vida fazia inúmeros milagres: curava inválidos, anulava pragas, expulsava o demônio das pessoas e certa vez até ressucitou uma menina. Mas o maior dos seus feitos foi sua própria ressurreição, é claro. Uma vez completada sua missão, tomou seu lugar ao lado do Pai, do Espírito Santo e de sua própria mãe, também alçada aos céus, deixando aos seus seguidores em terra a dura tarefa de explicar como tinha tanta gente no céu se Deus era para ser único.

Ah sim, esqueci de dizer que não estou falando de Jesus Cristo. Estou falando de Apolônio de Tiana, filósofo neo-aristotélico nascido na Capadócia no século I, um dos muitos profetas de seu tempo que, apesar das semelhanças no currículo, não teve a sorte de se tornar tão popular quanto seu colega de messianato.

Apolônio era basicamente um Cristo com maiores e melhores poderes. Além de fazer enxergar os cegos e andar os mancos, transmutar água em vinho e outros milagres usuais, Apolônio podia estar em dois lugares ao mesmo tempo, era capaz de ler pensamentos e falava línguas que nunca tinha aprendido. Certa vez, aprisionado pelo imperador romano, que o acusou de traição, escapou, milagrosamente é claro.

Mas não só de poderes mágicos se constrói um Messias. Um autêntico Messias precisa de um plano de salvação espiritual, de uma mensagem revolucionária de paz e amor. Apolônio tinha isso também. Como Jesus, Apolônio permaneceu celibatário e deu tudo o que tinha aos pobres, que não era pouco pois seus pais lhe deixaram uma polpuda herança ao morrer. Como J.C., Apolônio se opunha às danças, aos prazeres carnais e aos violentos espetáculos dos gladiadores (acho que Jesus não fez uma menção específica a isso nos testamentos mas suponho que ele teria algo a dizer sobre o assunto se alguém tivesse perguntado). Contrariamente a Jesus no entanto, Apolônio era vegetariano e condenava os sacríficos animais, tão frequentes em seu tempo (o que teria garantido pontos extras se eu estivesse considerando abraçar o cristianismo). Apolônio orava, mas considerava desprezível a idéia de que Deus pudesse ser demovido de Seu supremo propósito para atender as súplicas mundanas. Seres com que se podia fazer pactos, pregava Apolônio, não eram deuses, eram menos do que homens. Começo a entender porque a audiência de Apolônio tornou-se tão menor que a do Jesus... quem ia querer saber de um deus que não atende pedidos em plena Copa do Mundo?!

Diz-se que Apolônio era sempre sereno e nunca se zangava, ou seja, não era do tipo que armaria o maior barraco por causa de camelôs vendendo quinquilharias em pleno templo. Nisso eu defendo o Jesus. Queria ver Apolônio manter a serenidade diante de uma banca de adesivos "Deus é Fiel" e camisetas camufladas escritas "Exército de Deus, Aliste-se Agora".

Apolônio, como Jesus, tinha um jeito com as palavras; quando, dias antes de ser morto, avisou aos seus apóstolos onde estaria depois de ressucitar, um deles lhe perguntou: "você estará vivo ou o quê?" ao que Apolônio respondeu: "Do meu ponto de vista estarei vivo, do de vocês estarei revivido". Como convém aos verdadeiros profetas, como Jesus, o Oráculo de Matrix, o Mestre dos Magos e tantos outros, Apolônio sempre dava um jeito de falar por enigmas. Se ele soubesse a confusão que esse tipo de coisa causa depois de alguns milhares de anos, teria sido mais objetivo.

Apolônio era popular em seu tempo; foi saudado por centenas ao adentrar os portões da cidade grega de Alexandria, assim como Jesus o foi ao chegar a Jerusalém. Sua partida para o reino dos céus parece ter sido mais teatral, entretanto. Depois de entrar em um templo grego, Apolônio simplesmente desapareceu, enquanto um coro de virgens entoava cânticos em sua homenagem.

O que a Igreja Católica diz sobre Apolônio? O argumento mais frequente é que a história de Apolônio Cristo não foi escrita por testemunhas oculares. Bem, até aí nada, já que a de Jesus Cristo também não foi. Aliás, se há uma coisa sobre a qual concordam todos os historiadores modernos é que nenhum dos evangelhos do novo testamento foi escrito por alguém que tenha pessoalmente conhecido Jesus (sobre isso recomendo duas fontes sérias: "Jesus e Javé" de Harold Bloom, um renomado intelectual judeu (que leio no momento) e "A História do Cristianismo" de Paul Johnson um dos maiores historiadores vivos, do qual li até hoje somente os três primeiros capítulos). Pelo contrário: é geralmente aceito que os evangelhos foram escritos baseados em tradições orais quase meio século depois da morte de Jesus.

Já de Apolônio quase tudo o que se sabe foi escrito pelo filósofo ateniense Flavius Philostratus entre os anos de 205 a 245 D.C baseada nos escritos de um dos discípulos conteporâneos de Apolônio: Damis de Nineveh. Philostratus foi instruído a escrever a biografia de Apolônio por Domna Julia, esposa do imperador Septimius Severus, uma amante da filosofia que tinha em seu templo particular estátuas de alguns grandes homens sábios, como Orpheus, Jesus e o próprio Apolônio. Da biografia escrita por Philostratus nasceu o culto Apolônico, que durou muitos séculos mas, como se sabe, nunca foi tão bem sucedido quanto aquele outro.

Em um jogo de "Super-Trunfo" que trouxesse profetas em vez de carros ou tanques, a carta de Apolônio certamente perderia no quesito "popularidade" e "flagelo" mas ganharia fácil em "santidade" . Afinal, enquanto Jesus era visto com prostitutas, tinha uma história mal contada com Maria Madalena (aquela história da lavagem dos pés não te lembra o diálogo sobre pés e massagem em Pulp Fiction?) e regalava-se com vinho e carne, Apolônio era abstêmio, não comia nada que não viesse da terra e era visto como um homem santo já em vida. Digamos que Dan Brown teria mais dificuldade em fazer intrigas com a vida sexual de Apolônio do que teve com Jesus (o que nos teria rendido um best-seller mal escrito a menos se a história tivesse sido diferente). Sendo assim o velho jogo do "meu messias é melhor que o seu" começou logo cedo e continua até hoje. Os primeiros historiadores cristãos, como Eusébio de Cesáreia, no século III, até reconheciam os milagres e a santidade de Apolônio mas diziam que, enquanto os milagres de Jesus eram manifestações de Deus, os de Apolônio eram coisa do diabo (o original grego usa a palavra "daemon", que significa tão somente um ser espiritual, mas a conotação negativa foi a empregada pelos sucessivos teólogos cristãos). Mais tarde a tática para desacreditar Apolônio passou a ser acusar Philostratus de plagiar os evangelhos cristãos, algo que Eusébio, que estava na época e no lugar certo para saber disso, nunca fez. Hoje discute-se se não foram os escribas cristãos que se inspiraram na biografia de Apolônio.

A história de Apolônio me fascina. Primeiramente porque mostra como as histórias de milagres na antiguidade e de homens santos que voltaram da morte não são únicas nem tão especiais quanto os cristãos imaginam. Em segundo lugar porquê como admirador das minorias alternativas e geralmente fracassadas, como PDAs Newton, fitas Sony Betamax e Ceticismo Brasileiro, é bom saber que tenho uma alternativa para o dia em que pensar em me converter; só preciso aceitar Apolônio no meu coração.

Nota: Há pouquíssimos links sobre Apolônio em português, mas este é esplendidamente bem escrito e traduzido.

free webpage hit counter